viernes, 20 de noviembre de 2009

A Casa

Quando eu cheguei, a casa já tinha nome. Picasso's View. Eu ñ gostei. Nome em inglês para uma casa nascida e criada na capital catalana? Hummm... um pouco fake mesmo para os meus ouvidos pseudo-burgueses.

Verdade seja dita, a casa era, sim, uma verdadeira pintura em meio ao caos do casco antiguo de Barcelona. Mas, a meu ver era uma pintura mais ao estilo de Miró. Minimalista.

Com o passar dos dias, acostumando-me com o ambiente, desenvolvi minha teoria sobre o que o nome queria dizer. Olhando por qualquer uma das muitas janelas da casa, via-se uma paisagem cubista que transformava a cidade em um retalho de antenas, telhados, pontos turísticos e, aqui e ali, pequenos oásis particulares - as terracitas que davam cor à insuspeita vida que existia nos últimos andares dos edifícios.

Sim, a casa era um apartamento. Mas tinha cara de casa. Tem apartamento que é assim, casa. Pequenininha. Aconchegante. Parecia de brinquedo. Logo agora que estou beirando os quarenta, quem diria, morar numa casa de boneca!

E a casa-apartamento-de-boneca tinha até cama-casinha-na-árvore. Com escada e tudo! Quem eu desconfio que ñ gostava muito desse detalhe era a vizinha. Digo isso porque a escada tinha vida própria e cismava em ranger os dentes nos momentos mais delicados da madrugada. Principalmente se tinha visita. Mas essas visitas eram esporádicas, entao esse detalhe ñ tinha muita importância.

Defeito mesmo, desses que todos temos, ela, a casa, também tinha. Era muito antiga, coitada. Nasceu na época que elevador era ficçao científica, e o único modo de chegar até a sua porta era vencer os 120 degraus dos seus 7 andares.

Mas como já dizia o poeta, "nada é mais bonito que os defeitinhos da mulher amada". E estando apaixonada pela casa, o defeito tinha sua graça. Enquanto vencia a tormenta diária da subida ao topo do mundo eu pensava que as calorias perdidas naquele intento, me permitiam chegar ao meu lar-doce-lar, me esparramar nas almofadas da terraza e beber minha cervejinha sossegada, sem culpa nenhuma no cartório.

Ah! A terracita... Transformou-se no meu quarto-sala-observatório no último verao barcelonês. Passei muitas noites veraniegas ali... olhando o céu... seguindo o traçado celeste de Júpiter... jogando pensamento fora... dormindo ao ar livre... recebendo as amigas... os amigos... ou simplesmente tentando espantar o calor africano que assolou a Cidade Condal no mês de agosto.

E a casa era engraçada. Tinha tantos relógios como era possível. Uns seis que eu me lembre. Um deles eternamente no horário de verao. Isso sem contar os badalos dos sinos da Catedral e da Igreja Sant Pere, sempre com uma diferença de uns dois minutos entre eles e nunca no horário oficial de Madrid. Acho que o padre encarregado devia tocar o tal sino quando "le dava la gana".

Pensando bem, a casa era encantada. Ou pelo menos, tinha o seu encanto. Lembro-me agora dos vários espetáculos naturais que presenciei quando vivi ali. No inverno, eu acordava às 6h30 da madrugada para trabalhar, e apesar de parecer algo sub-humano, eu, de super bom humor, tomava o meu café enquanto o sol nascia diante da cozinha em tons rosáceos distintos a cada manha... Depois descia a pé para o trabalho sorrindo de felicidade!

Chover, ñ choveu muito. Mas teve aquela vez que a chuva trouxe a terra do deserto, isso eu li no jornal. Ver a terra caindo, eu ñ vi, mas quando a chuva secou, deixou um rastro avermelhado cobrindo o que era novo e o que era velho. Bastava olhar pela janela que logo se adivinhava o que tinha ficado fora. Aliás, isso depois de limpar bem porque até a vidraça ficou parecendo figurante dos filmes do John Waine. Ali até os brutos também amam.

Falando nisso, e se ñ me engano, foi nessa época que o vento soprou forte. Tao forte que tinha até nome. Tramuntana. E quando soprava a Tramuntana a casa parecia o Morro dos Ventos Uivantes. Para mim, nativa de um signo de ar, a musicalidade era até divertida, o único porém era ter que tirar tudo da terraza para ñ correr o risco de um grave acidente. Já imaginou uma cadeira voadora???

Logo depois da primavera chegaram as andorinhas. Ficaram por aqui durante um mês, mais ou menos. Fizeram seu ninho no telhado e a casa nem chiou. Pelo contrário, cedeu o melhor lugar, logo acima da minha cama-casa-na-árvore para as hóspedes de honra.

Isso me proporcionou acompanhar todo o desenvolvimento da familia passarinho. Os bebês andorinhas nasceram ali. Cresceram. Aprenderam a cantar. Deram os primeiros passinhos. Ñ nessa ordem necessariamente. Mas me lembro de cada rumor... da vozinha fraquinha... piu-piu-piu... depois mais forte... até que um dia os proprietários oficiais da casa me avisaram que tinha uma delas com a patinha presa no telhado.

Montada a expediçao de socorro, subimos para o resgate. Demorou menos de um minuto. Uma patinha machucada porém nada muito sério. Peguei a bichinha na mao. Dei-lhe água. Senti o seu cheiro. E me dei conta de que os passarinhos, assim como gatos e cachorros, também têm o seu cheiro peculiar. Ñ sentia esse cheiro desde criança, na época em que um tio que tinha mania de caçador, chegava do final de semana no mato e a gente comia polenta ao molho d'osseau. Nunca tinha associado o antes e o depois daqueles almoços, pobres passarinhos... mas o cheiro triste ficou gravado na minha memória.

E triste foi o dia que, sem avisar, o bando todo se foi... em busca de outro verao...

Justo agora, me lembro que tenho que me despedir. Depois de um ano deleitando-me com os prazeres terrenos e espirituais que a casa me proporcionou, é a minha vez de seguir em busca de outro verao...

Gracias, minha casa, por compartir comigo tantos momentos felizes e uns poucos dolorosos, como quando recebi as notícias da morte de minha avó em dezembro passado e de minha tia em junho desse ano.

Houve também momentos chamanicos, de ritual com fogo, como no Ano Novo super especial que decidi passar sozinha, contente comigo mesma...

Ainda me restam alguns dias aqui. Dez para ser mais precisa. Enquanto preparo caixas e maletas, agradeço a casa por ter me recebido de janelas abertas!